Assombração

quarta-feira, maio 09, 2007

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Desde há várias semanas, algo no seu mais profundo íntimo a confrontava com a certeza de qualquer coisa de inusitado se passava dentro dela. Uma incontrolável estranha energia interior emanava por todo o seu corpo e revelava-se no seu rosto com um tal poder que ninguém conseguia ficar indiferente à sua aura exposta em tamanha clarividência. Apesar dessa força indomável, brotava na sua face numa serenidade plena, suavizando os traços embutidos na pele em sulcos de suor de quem vive do trabalho árduo, iluminando-a em completo estado de graça.
Agora que pensava nisso, constatava desde que essa força enigmática a habitava, vários acontecimentos estranhos se passavam quando estava presente. Panelas e tachos que se atiravam em suicídio desamparado no chão da cozinha sem que ninguém lhes tocasse. Portas que se abriam e fechavam inadvertidamente sozinhas à dúbia passagem de inexistentes correntes de ar. Água que corria abundantemente de torneiras fechadas, estancando a sede de qualquer alma perdida tão rapidamente quanto havia iniciado. Cheiros adocicados a flores, desabrochando por entre as fracturas expostas das paredes, que inebriavam até à loucura as finíssimas ripas de madeira, cruamente desnudadas pela ausência de vários fragmentos de cal.
Tão frequentemente isso sucedia que as irmãs, mais velhas e mais experientes em fenómenos inexplicáveis do além, insinuavam em murmúrios receosos haver espírito desorientado perdido da luz à solta pela casa e a ser verdade impunha-se uma urgente e intensa defumação de tudo quanto lá dentro existisse, desde a cama até à última peça de roupa mais íntima. O que só dava azo a que ela as escarnecesse em sonoras e límpidas gargalhadas, ironizando que só poderia ser o esclerosado espírito solitário do Vidal que, por falta de melhor companhia, a tinha determinadamente procurado desde a quinta do seu avô até a encontrar ali, tão longe do seu aconchegante antro de velho fantasma, para agora carinhosamente a assombrar em gestos de puro amor e dedicação fantasmagórica, mas por ser quase um parente chegado não achava correcto expulsá-lo do seu novo lar, sem mais nem menos, à custa de impiedosas sessões exorcizadas em rezas e em queimas de incenso, mirra e alecrim.
Três meses e meio duraram as tão apregoadas assombrações, às quais, por fim, já todos se tinham habituado e ninguém já estranhava os ruídos de angelicais vozes docemente sussurradas que a seguiam para todo o lado e que a embalavam à noite antes que esmorecesse no leito conjugal exaurida de cansaço. Pararam no exacto instante em que as suas suspeitas se confirmaram e teve a certeza de estar grávida do seu primeiro filho.