Puta de Vida

quarta-feira, junho 13, 2007

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Essa mulher, de corpo presente mas de alma tão assiduamente ausente, deambulava num mundo à parte, onde objectos inanimados obedeciam a uma vontade superior, num ritual de vassalagem e onde ele parecia não ter lugar. Por várias vezes a surpreendia nos seus afazeres caseiros, camuflando um sorriso mal disfarçado que levemente se insinuava nos lábios, em segredos sussurrados por entidades invisíveis. E nem o seu áspero ar de censura inquisitória, questionando-a o porquê de tanta alegria descabida, pois não sabia ela que o dinheiro que ele trazia da merda da tipografia, que o patrão fazia questão de todas as semanas lhe atirar para as mãos em sinal de desprezo de chefe altruísta, acto de benevolência extrema para com empregados que não mereciam tamanha gratitude e que deviam agradecer-lhe cada tostão que dali levavam e que o mais certo seria irem gastá-lo na primeira tasca que encontrassem, que olhasse para aquelas mãos ainda manchadas da tinta de impressão negra carregada que lhe marcava permanentemente os dias, as horas, os minutos, os segundos na porra daquela tipografia, sim, esse dinheiro não dava nem para mandar tocar um cego quanto mais para comerem coisa que se visse? onde estava a vontade de sorrir? que lhe dissesse porque ele também queria sentir-se tão feliz quanto ela, e nem o tom de voz alterado que ia subindo a cada palavra despejada da garganta tantas vezes entalada de cada humilhação que o secava por dentro, conseguia apagar o perturbante brilho que enfeitiçava qualquer um que a olhasse fixamente nos olhos. Ela respondia-lhe sempre não há razão nenhuma, de sorriso já esvaído ao canto dos lábios e de voz sumida, não impedindo, no entanto, que ele se sentisse o mais indefeso e miserável dos homens, impotente de absorver a descarga eléctrica daqueles olhos avelã sobre todo o seu corpo, que o atordoava momentaneamente num misto de inquietação e perplexidade. Acabava sempre amedrontado pela experiência, que afastava num ápice com uma explosão exacerbada de irritabilidade, vitimando a primeira porta desprevenida ao seu alcance, atirando-a com toda a força num estrondo que ecoava pelas paredes da sala.