Glória

sábado, janeiro 03, 2009

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À mesma hora de sempre ensaias o teu sorriso de menino matreiro, mal me vês entrar na sala. Carrego o teu pequeno-almoço geometricamente alinhado no tabuleiro. A caneca de leite com café, adoçada com 2 colheres de açúcar, nem mais nem menos, e 3 tostas barradas com doce de morango, que tu adoras, único pecado diário permitido pelo médico.
Ao mesmo tempo que onduleias com as mãos as farripas de cabelo grisalho que teimam em desmoronar do alto da cabeça, anuncias alegremente:
- Já sentia saudades suas, minha querida. Hoje demorou tanto a chegar. Sabe, desde que cuida de mim, a minha vida mudou muito. Para melhor. Sinto-me tão feliz quando a menina está ao meu lado. Perto de si sou um outro homem.
Esboço um sorriso triste ao teu palavreado inocente. Hoje, tal como todos os dias, vaporizas a tua boa disposição em todas as direcções. Sempre com bom feitio, apesar de tudo. Depois de ter pousado o tabuleiro no teu colo, esconjuro em bordoadas enérgicas as bactérias escondidas nas almofadas atrás de ti. E digo-te carinhosamente enquanto te ajudo a reclinar na macieza das penas enxotadas:
- Vá lá. Bebe o leite antes que arrefeça.
Fazes de conta que não me ouves e prossegues:
- Qualquer dia, perco a vergonha e peço-a em casamento, oh lá se peço! Era mesmo duma mulher assim que eu precisava. Tão meiguinha comigo. Trabalhadora. Pensa que não a vejo dum lado para o outro sem descanso, a arrumar daqui a limpar dali? E bonita. A menina sabe que é bonita não sabe? Mas é claro que sabe! Não lhe devem faltar pretendentes com esse palminho de cara! Aposto até que já deve ter namorado.
Essa tua afirmação amuada, faz-me soltar uma gargalhada sonora. Meu querido inocente amor!
- Sim, já tenho namorado. Há muitos anos!
- Está a ver como a vida é injusta… eu a querer tanto ser seu namorado e a menina já arranjou um. Sou mesmo um pobre sem sorte. Aposto que ele não a merece tanto quanto eu. E olhe que eu faria de si uma mulher muito feliz.
Abro um a um os frascos e retiro de cada um comprimido que coloco à vez na tua boca, ao mesmo tempo que fazes esgares faciais como se te tivesse dado cicuta a provar.
- Vá, anda lá. Tens de os tomar todos antes que se acabe o leite da caneca.
- Está-me a tratar assim, porque lhe disse que gosto de si, é? Mas olhe, que a menina ficaria melhor servida comigo, sabe? Não sou rico, mas sou muito trabalhador. Eu seria muito seu amigo. Pode perguntar a quem quiser. Toda a gente lhe dirá que sou um rapaz honesto. Não lhe haveria de faltar nada. Não sei porque me trata assim. Eu que a estimo tanto… pense lá bem. Melhor será deixar esse seu namorado e ficar comigo. Eu seria o homem mais feliz deste mundo se aceitasse. Eu gosto tanto de si!
Disfarço as lágrimas que me afloram aos olhos. Sinto-me tão impotente por não saber como te resgatar dessa doença maldita que consome lentamente as recordações de uma vida, alheado de quem sou, do que significas para mim. Meu amor, meu amigo, meu companheiro de uma vida. Tantas vezes me apetece abanar-te. Gritar bem alto O MEU NOME É GLÓRIA, olha para mim e vê. Sou eu, a tua Glória. Que te deu filhos e netos. Que atravessou uma vida ao teu lado aguentando firme nos bons e maus momentos. Não vês? Sou eu! GLÓ-RI-A. Diz o meu nome. Vá. Diz! DIZ O MEU NOME! Por favor, diz que sabes quem eu sou!
- Pronto, estás a ver que não custou nada? Para quê tanta fita? Vamos lá acabar com o restinho do leite…
- Deixe que lhe diga, a menina é mesmo má para mim. Desgraçado que me fui logo encantar por uma peste destas…! Eu que lhe tenho tanto amor! Mas um dia ainda vai gostar de mim e deixar esse seu namorado, oh se vai!