A Traição

segunda-feira, outubro 23, 2006

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A porta não demora mais que um escasso momento para ser aberta despudoradamente, sem um único suspiro de lamento das dobradiças que cedem obedientes ao movimento de profanação, deixando antever o esconderijo dos dois corpos despidos, emaranhados de luxúria e prazer que num primeiro instante nem se apercebem que já não estão salvaguardados do segredo cúmplice das quatro paredes. Nenhum deles profere qualquer palavra quando descobrem por entre a penumbra excitada do quarto o vulto negro, imóvel que abandona o manto pelas costas, deslizando-o desamparado até aos pés da cama. O seu braço erguido treme de desprezo e raiva quando desfere o açoite inicial de chicote que vibra em compassos sibiladamente ritmados, numa selvática percussão que a deixa sem fôlego, exausta de todas as infidelidades suportadas em silêncio e surda aos gritos doridos de ambos os amantes cruamente expostos, esvaindo-se rapidamente na dor em catarse, numa sessão de auto-exorcismo. Não consegue pôr fim ao ritual de sacrifício desse conturbado e malfadado amor egoísta, enraizado em sucessivas traições decadentes e em perdões tacitamente enredados no silencioso assentimento de receber o seu homem todas as vezes que o sabe embrulhado em água de cheiro barata. Nenhum dos amantes consegue reagir à flagelação do juízo final, sentenciado e decretado sem qualquer apelo nem agravo. Não tem percepção de quantas vezes desfere cegamente golpes a esmo, até que alguém lhe segura energicamente o braço pelo pulso.

- Minha Senhora, por favor pare, não merece humilhar-se dessa forma.
- Toda a gente sabe, Sebastião… Toda a cidade sabe o doidivanas que ele é e riem-se na minha cara…! Sou a chacota da terra!
- Por favor, venha comigo! Deixe-me cuidar da sua face. Está ferida! Provavelmente magoou-se com o chicote. Venha…
- Podes voltar para casa. Quando lá chegares já não estou…! Não te quero ver mais à minha frente!
- Venha, peço-lhe. Falará depois com o Patrão, com mais calma. Agora não é a melhor altura.
- Desgraçou a minha vida, sabes Sebastião? Sou o escárnio de todos…
- A Senhora é melhor do que todos eles. Não se deixe levar por contos e ditos!
- Desta vez eu vi. Não imaginei coisas… Eu vi, Sebastião! E tu és testemunha de todas as suas traições. Sempre soubeste e encobriste-o! Não fosse eu meter pés ao caminho e ver com os meus próprios olhos...
- Eu sei minha Senhora, mas eu quis protegê-la de todo esse sofrimento… Agora aquiete-se. Deixe-me limpar-lhe o sangue da cara.

I Love You Baby!

terça-feira, outubro 10, 2006

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Só quero refazer aqueles últimos 30 segundos. Intermináveis! Eterno filme em “slow-motion” que passa vezes sem conta dentro do meu cérebro, numa obsessão autista, até não ser capaz de afugentar mais as imagens, até cair em letargia cataléptica, anestesiada pela exaustão... Só peço isso: poder alterar os fatídicos últimos instantes na mesa de montagem, desta vida de classificação B, poder devolver-lhe a alegria adolescente com que invadia o meu dia-a-dia, poder dar a minha vida pela dele! Ser forte para o proteger de todo o mal – meus braços não foram suficientemente capazes para o prender à vida – ser Deus para retroceder no tempo e repor a justiça numa existência destroçada impunemente e sem propósito, assim: em fracção ínfima dum momento. Isso, queria ser Deus para reparar o mal que Ele sadicamente Espalhou – sim, Deus, estás a ouvir? A Ti, que tudo é possível, porquê aniquilá-lo dessa forma? Porque não eu? Jamais me importaria de ser eu. Então, para quê destruir os seus inofensivos sonhos de menino que abarcava o mundo nos seus projectos? Tu, que tudo Podias, nada Fizeste! Se isso fazia parte dos Teus planos, para quê deixá-lo crescer na esperança? Para quê deixar-me viver a minha mais perfeita esperança através do seu olhar? A sua voz repete-se incessantemente em mim numa última frase “Mãe, tenho medo…!” – não tenhas Amor, não vou deixar que nada de mal te aconteça. Menti, menti, menti…! Jamais me perdoarei por ter quebrado essa promessa de protecção perpétua que por Tua culpa fui incapaz de cumprir! Jamais Te perdoarei que ele tenha sentido o pavor da morte nesse último instante! Só quero voltar ao momento imediatamente anterior (não peço mais nada, só isso – por favor!), quando a vida ainda se agarrava a ele como naufraga em finado desespero e ficar aí, eternamente, alheada do sofrimento em redor, alienada dos suplícios dos outros e permanecer, aí, contigo meu Amor! E dizer-te o quanto te amo! E contar-te pela infinitésima vez, não omitindo qualquer pormenor, o dia em que mudaste a minha vida para sempre! E contar-te as histórias que tu mais gostas, aquelas que ambos polvilhamos com os mais adulterados e subversivos detalhes! E fazer os disparates mais estapafúrdios que te desmancham em saudáveis e claras gargalhadas! E prometer-te o “Labrador” que pedes há imenso tempo, mas que evito sempre com o politicamente correcto: “Vamos ver…”! E sentir o calor do teu abraço apertado à volta do meu pescoço, que quase me sufoca de alegria! E ouvir-te no teu perfeitíssimo, irrepreensível sotaque “I Love You Mum” (I Love You Too, Sweetheart)! E ficar aí, para sempre… contigo!