O Sonho

domingo, maio 04, 2008

2 Comentários

Hoje sonhei contigo. Sonho rápido, fugaz. Encapsulado em esconsos e dúbios sentidos urdidos no silêncio da madrugada pelo inconsciente, que se diverte a lançá-los à consciência como ratoeiras de queijo à espera da gula e soberba da sua vítima incauta, gozando sadicamente por antecipação com a imagem desta, mortalmente debatendo-se de miolos esmagados contra a realidade. Metáforas sonhadas, escondendo aqui, destapando ali os escuros bafientos túneis secretos da existência, deturpados no dia-a-dia pelo consciente que os molda e os contorna com medos, ânsias e vontades, tornando-os menos dolorosos menos assustadores. Lembro-me de viajar num autocarro, sentada num banco de um único lugar, daqueles solitários bancos dianteiros em frente a um outro solitário banco dianteiro. Do lado direito, de costas para a paisagem e para o movimento. Cabeça quase colada ao vidro, olhando sem ver o infinito através deste. Ninguém sentado à minha frente. Sem destino traçado. Deixando-me ir pelo movimento. O anónimo motorista fazendo o percurso desconhecido parando e arrancando em sítios incógnitos que só ele parecia saber. Não me parecia importar. O autocarro quase vazio tirando umas 5 ou 6 pessoas dispersas, sentadas ao acaso. Ninguém parecia importar-se. Ou talvez já conhecessem o caminho que eu desconhecia. Não me lembro de nenhum pormenor da paisagem mas pairava no ar a sensação de um dia ameno de final verão. Eu, sozinha. Sentada no banco solitário de costas voltadas ao percurso, não vendo casas, campos, ruas, pessoas, animais que, obedecendo à vontade insondada do anónimo motorista, com maior ou menor velocidade, corriam a afastar-se da janela onde eu, distraída, olhava sem ver o infinito. Não me apercebi da tua presença. Dei por ti apenas no momento em que te dirigiste para a porta e carregaste no botão accionando o sinal luminoso de saída. Acompanhava-te uma mulher de ar muito jovem. Olhos de um azul intenso. Pele sedosamente clara. Cabelos negros curtos, acima dos ombros. Rosto irradiando a felicidade que se tem quando se é demasiadamente jovem e se acredita que o mundo é inocentemente nosso. Qualquer um naquele autocarro poderia tomá-la por tua filha. Menos eu. Não era tua filha. Tu, atrás dela. Não falamos. Nenhum fez menção de dizer algo. Nada. Apenas o nosso olhar se cruzou e hipnoticamente se enganchou, para não mais se afastar. A tua mão direita pousada sobre o ombro da mulher jovem, parecia querer protegê-la de qualquer desequilíbrio provocado pelo movimento irregular, embora estivesse apenas pousada. A tua mão esquerda entrançada na alça de segurança por cima das vossas cabeças. Tu, atrás da mulher jovem. O autocarro obedeceu algumas centenas de metros à frente ao teu pedido de paragem. A porta abriu-se. A mulher jovem desceu. Desceste atrás. Não sem antes o nosso olhar cruzado teimar em não deslaçar e eu receber uma profunda tristeza vinda dos teus olhos escuros. A mesma tristeza de quem parte sem regresso. A tristeza de quem optou, sem saber se escolheu o melhor. A tristeza de quem não voltará atrás. Mesmo que o sentimento ou a vontade ou ambos o peçam. Breves fracções de segundo gravadas eternamente em tempo fugaz de sonho. Apearam-se numa rua de passeio estreito, demasiado estreito até, de casa velha a servir de murado amparo para quem descesse aí. Lembro-me que as janelas da casa estavam situadas apenas no 1º andar. Provavelmente para que ninguém pudesse ver o que as paredes guardavam. Não dissemos palavra. Ninguém soube que comunicamos sem palavras e que dissemos tudo. Eu soube quem era a mulher jovem. Tu soubeste que eu soube. Saímos um do outro. Despedimo-nos. Ambos soubemos que nos estávamos a deixar. Não fiz qualquer tenção em te segurar, apesar do vazio imenso que ficou depois da tristeza recebida dos teus olhos. Apesar das minhas mãos caídas sobre o regaço. Também elas vazias. Eu, continuando viagem num autocarro de linha periférica serpenteando por ruas apertadas de empedrado rugoso sem destino traçado. Tu, apeado numa rua qualquer de passeio estreito para duas pessoas, de mulher mais jovem pelo braço, abandonando de livre escolha o meu autocarro de percurso desconhecido e irregular. Demasiadas incertezas para quem tanto carece de segurança. Os dois em equilíbrio periclitante no passeio estreito. Despedimo-nos sem um único som. Sem nada. Apenas com um cruzar de olhares por testemunha. Necessitei dum autocarro em andamento num qualquer sonho mesclado para suportar a realidade. O homem que amo preferiu o amor de outra mulher. Idade para ser sua filha. Mas que não é sua filha.