Madrugada

segunda-feira, novembro 19, 2007

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É tarde. Sem sono. Sem vontade nem motivo em voltar para casa. Vagueio sem plano traçado pela cidade, de ruas despidas de movimento, despreocupadamente aninhada no seu sono profundo, agitado esporadicamente pelo rodopiar rebelde das folhas outonais presas a invisíveis correntes de vento em redor dos encarquilhados troncos das árvores. Escassas sombras difusas, assemelhadas vagamente a trôpegas formas humanas, surgem deambulando erraticamente pela noite, impacientemente defecadas pelos seguranças à porta dos últimos bares ainda estoicamente abertos mas desesperando por encerrar, onde acabaram de emborcar desalmadamente todo e qualquer resquício de gota de álcool como se a manhã seguinte não despontasse daqui a breves instantes. Cruzo-me de carro a baixa velocidade com essas pequenas amálgamas que escancaram a gargalhada e as palavras em ébrios sons estridentes, sobrepondo-se por segundos à serena melodia debitada pela estação de rádio FM para ouvintes insonolentes. Mais à frente, uns 500 metros, uma mulher de maquilhagem sombria, já desbotada pelo fino orvalho, ostenta um ar seraficamente teatral de Marilyn Manson. As suas formas curvilíneas açaimadas numas calças negras de Lycra e os peitos profusos prontos a saltar do decote em V acentuado esperam a paragem do último cliente noctívago da madrugada. Tenta enganar o frio e a solidão marcando o passo na calçada ao som ecoado dos altíssimos tacões agulha. Alguém estaciona à sua frente. Dois homens bastante jovens dentro de um topo de gama alta cilindrada. A mulher, inclinada junto à janela da porta da frente notifica o preço do seu corpo escravizado dentro de roupas provocantes como se vendesse castanhas na beira da estrada. A transacção presumivelmente concretiza-se. A porta traseira abre-se e a mulher reclina-se no assento. O carro arranca imediatamente a seguir em grande velocidade. Conduzo sem destino. Alheado do apelo das montras profusamente iluminadas que desfilam lateralmente à estrada, derramando no passeio vazio todo o seu glamour cintilante. Sem vontade de regressar ao que me espera. Uma casa vazia. Ainda mais despida do que esta avenida mergulhada em silêncio. Uma vida vazia. Continuo sem sono. A anarquia do meu percurso conduz-me inconscientemente a caminhos que sei de cor. Vezes sem conta percorridos. Levam-me a ti. À tua porta. Imagino-te tranquilamente dormindo. Serena. Como quando dormias enroscada em mim e eu embalado no ameno odor a perfume da tua nuca. Estaciono de frente à janela do teu quarto. As persianas corridas do último andar. Estás tão perto de mim e tão longe. Acompanhada? Muito provavelmente. Incomoda-me. Há dias vi-te com ele. Coincidência das coincidências. Raramente vou ao cinema e muito menos àquela hora. Apeteceu-me. Sentaste-te 5 filas à frente, ligeiramente oblíqua à posição da minha cadeira. Não me viste. Consegui perceber que encostaste a cabeça na dele enquanto conversavam baixinho. Ele abraçou-te carinhosamente. Beijou-te levemente nos lábios. Notei cumplicidade no olhar. As mãos entrelaçadas enquanto o filme passava no ecrã. E um frio no estômago difícill de controlar. Incomoda-me. A rádio solidariza-se com o meu desconforto ao som de Phil Collins... How can you just walk away from me, when all I can do is watch you leave, cos we’ve shared the laughter and the pain and even shared the tears, you’re the only one who really knew me at all... Não sei explicar-te porque fui incapaz de te amar da forma que tu querias. Mas sei que te amei. Que te amo. Na minha maneira retorcida de ser. Entendo, foi pouco para ti... I wish I could just make you turn around, turn around and see me cry, there’s so much I need to say to you, so many reasons why, you’re the only one who really Knew me at all... Incomoda-me. Imaginar-te abraçada a ele na tua cama. Ele ocupando o lugar que foi meu. Recebendo os teus beijos. O teu calor. Um frio no estômago difícil de controlar... Take a good look at me now, cos I’ll still be standing here, and you coming back to me is against all odds, it’s the chance I’ve gotta take...

What a Wonderful World - Feliz Aniversário!

quinta-feira, novembro 01, 2007

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Hoje é dia de aniversário. Minha avó paterna faria hoje anos. Matriarca na verdadeira acepção da palavra. Adorava sentir a sua extensa prole debaixo das suas asas protectoras. Por ela, a família agregava-se nas datas mais importantes. Nessas alturas sentia-se verdadeiramente feliz. Era o elemento aglutinador de toda a descendência (muitos filhos, muitos mais netos e alguns bisnetos). Tinha um sentido de humor refinadíssimo! Adorava contar anedotas levemente picantes, implicitamente imbuídas de duplos sentidos, que lhe preenchiam o olhar duma inocente malícia quando desvendava o final. A doença terminal, já em fase avançada, tirou-lhe a vontade de as contar e implicitamente a expressão de menina travessa que lhe iluminava a face sempre que seu olhar sorria. Mais do que o medo de morrer, creio que a minha avó odiava a ideia de, após a sua morte, não ter mais os seus filhos, netos e bisnetos junto dela. Isso, entristeceu os últimos anos da sua vida, quando tomou consciência que a doença lhe iria levar a melhor. Hoje, caso ainda vivesse, estaríamos todos em seu redor em grande algazarra festiva. E ela, do canto do seu sofá observando-nos com ar de felicidade em ter todos os seus meninos à sua volta.

Hoje é duplamente dia de aniversário. Alguém que amei intensamente faz hoje anos. Meu primeiro verdadeiro amor. Com ele vivi alguns dos melhores momentos da minha vida e também alguns dos piores. Foi sempre um relacionamento de extremos. Oito ou Oitenta. Ou a subida aos céus ou a descida aos infernos. Psicologicamente perturbador quer nos bons e nos maus momentos. Amei-o muito, mesmo depois de termos acabado. Amei-o mesmo quando o escorracei definitivamente da minha vida (única hipótese de me salvar da espiral de autodestruição que arrastava consigo, não poupando ninguém, muito menos aqueles que ele amava). Amei-o enquanto vivia outros relacionamentos afectivos. Amei-o em corpos de outros. Hoje, tenho por ele um enorme carinho. Alguns anos atrás consegui fazer, se não a paz completa, pelo menos as tréguas com esse passado afectivo tão tumultuoso. Hoje, como sempre, desejo-lhe o melhor, esteja onde estiver. Num aniversário, ofereci-lhe um vinil de Louis Armstrong “SATCHMO”. “What a Wonderful World” faz parte desse disco. Feliz Aniversário!