É a Vida...!

terça-feira, janeiro 22, 2008

Nunca me tinha despedido de alguém, para quem a morte chegará muito em breve. Não sei lidar com a perda das pessoas que me são queridas, quer seja pela sua morte, quer seja pelo seu afastamento voluntário ou involuntário. Nunca soube. Acho que eu própria vou morrer sem nunca aprender. Muitas vezes passo por insensível, por me afastar delas nesses momentos. Não me despedi da minha avó, nem do meu avô, nem da minha tia, nem tão pouco do meu pai adoptivo antes de falecerem. Os que morreram lúcidos, partiram a achar que eu não me importava com eles. Não é verdade. Apenas não sabia dizer-lhes o quanto iria sentir a sua falta sem irromper em lágrimas e soluços. Eles precisavam de apoio e de estabilidade que lhes garantisse uma despedida tranquila da vida. E por sentir que necessitavam de tudo, menos de alguém a soluçar, banhada em lágrimas, baba e ranho, preferi que partissem a pensar que era uma ingrata a ter que perturbar os seus últimos dias com os meus pavores e inseguranças.
Apesar disso, sábado passado enchi o peito de uma trémula coragem e fui despedir-me da minha mãe adoptiva. Depois do AVC pouco restou da mulher forte, determinada que era. Foi sempre uma mulher lindíssima, destabilizadora dos padrões de beleza mediterrânicos - olhos de um azul imenso, pele clara e estatura alta - aos quais a idade acrescentou uma aura de beleza eterna envolta em delicadas rugas e cabelos brancos. As suas feições continuam iguais, embora o seu olhar se perca no rosto dos visitantes sem achar similaridade com alguma lembrança por ventura deixada esquecida no mais remoto recanto da sua apagada memória. A cada minuto que passa, o fino fio que a prende à vida vai-se tornando cada vez mais frágil. Não creio que me tenha reconhecido. Melhor assim. Já foi difícil conter as lágrimas. Se ela estivesse consciente da sua situação terminal e de quem eu era, ser-me-ia incomportável.
Tinha 1 mês de idade quando ela e o marido, falecido há já vários anos, decidiram adoptar-me aos seus cuidados, enquanto os meus pais se ausentavam para o trabalho. Foi uma adopção de coração onde era tratada como a filha mais nova. Fui sempre considerada da família por todos, desde os familiares emigrados em França, que em Agosto traziam a um Portugal ainda adormecido na ditadura as últimas novidades do mundo moderno, até ao futuro genro que anos mais tarde se casou com a única filha deles e a quem eu, pirralha de palmo e meio, encobria o namoro de qualquer interrogatório que me fosse feito pelo progenitor. Passei mais tempo com eles, durante a minha infância, do que com os meus pais. Para onde eles fossem eu ia também, desde a simples visita ao cemitério para enfeitar as campas de flores e velar os seus mortos, até às idas para Esmoriz nas férias de Verão, onde corria na praia atrás de caranguejos e atabalhoadamente ajudava as varinas na recolha das redes de pesca.
Neste momento da minha vida, em que se somam as perdas físicas às perdas afectivas e às perdas materiais, questiono-me se haverá realmente algum propósito nessa dor que me deixa órfã daqueles que mais amo. Que crescimento interior poderá nascer de tamanha dor desproporcional? Suponho, apenas algo muito sofrido e sombrio que eficazmente disfarçarei através meu habitual e irónico humor negro. Apenas alguns, muito poucos, saberão notar que o brilho do olhar reflectirá uma luz turvada, diferente do normal. Porque um pouco de mim já partiu com ela...

Como tantas vezes ela dizia:
É a vida...!

3 Comentários:

Anónimo disse...

Passamos uma vida inteira a encontrar pessoas de quem teremos que nos despedir um dia...

Abraços.

João Lisboa disse...

É muito bela a descrição que fazes dessa mulher. Tenho essa memória! Era de facto uma mulher lindissima.
Quer ela quer o marido foram VERDADEIROS AMIGOS dos teus Pais!
BJs

Anónimo disse...

Meu post de hoje foi sobre AVC também. Situação da vida que nunca estamos preparados e que muito sensibiliza.