Saudades de Ti

sábado, setembro 29, 2007

Sabes amor, hoje o meu peito parece querer estalar de tanta saudade. Nem sei bem porquê. O dia começou igual a tantos outros iniciados no lusco-fusco das macilentas alvoradas chuvosas de Inverno. Levantei-me devagar para evitar desconjuntar as articulações dos ossos, tentando ludibriar a dor que se apodera de cada ínfima parte do meu corpo sempre que faço o mínimo gesto. Tu sabes, este tempo é uma desgraça para o meu reumático. Dei de comer ao Óscar que já miava desde que a luz envergonhada havia despontado por entre as frinchas desdentadas da persiana, aquela que prometeste vezes sem conta arranjar e nunca arrumaste coragem para te encavalitares no cimo do banco em equilíbrio de fazer inveja aos trapezistas circenses em fim de carreira. Apesar de protestar contigo também vezes sem conta, nunca fiz muita força para que a consertasses. Tinha medo. Tu sabes. Mas como te estava a dizer, nada de especial o começo deste dia. Igual a tantas resfriadas manhãs, em que a enregelada água protesta em gritos fantasmagóricos do aperto causado pelos canos ferrugentos. Os mesmos ruídos de gargarejos vindos do Sr. Fonseca do andar de cima, sempre à mesma hora, dias e dias seguidos, anos a fio. Hoje não foi excepção. A correria dos pequenos da Dª Carmo, desbravando em abalos sísmicos os degraus das escadas, em direcção à escola. Estão tão crescidos. Lembras-te, costumavam tocar à porta e esconder-se e tu simulavas uma cara feia e zangada e troavas pelo patamar que ias chamar a polícia se voltassem a repetir a brincadeira. Nunca os conseguiste convencer. Apareciam à tua frente segundos depois com a maior cara de safardolas que se possa imaginar, pedinchando guloseimas que sabiam de antemão teres nos pejados bolsos do teu casaco de malha. O Óscar ensarilhou-se nas minhas pernas de cauda levantada depois de saciado o seu apetite de pseudo felino selvagem, enquanto tomava o meu café com leite. Sabes bem amor, tu mimaste-o como ninguém. Aquele não caçaria um rato morto nem que a sua sobrevivência dependesse disso. Eu bem te chamei a atenção. Não se pode tratar os animais como pessoas. Ficam mal habituados. Mas não me ligaste nenhuma. Guardavas sempre um petisco qualquer do almoço ou do jantar para lhe dar a seguir, sempre que eu virava costas. Eu fingia não ver. E tu fingias não saber que eu via. Ele sempre gostou mais de ti. Pudera. Mimava-lo como uma criança. Mesmo quando entrou aqui pela 1ª vez vindo da rua, dentro do teu casaco, encostado ao conforto do teu peito. Dez reis de gato esquelético de pêlo molhado, ainda de olhos remelados, abandonado pela mãe num baldio. Talvez tenha sido por vê-lo a fixar o sofá onde costumavas sentar-te a ler o jornal, religiosamente deixado à porta de nossa casa pelo Sr. Alfredo da tabacaria em frente, que despertou o que ao princípio pareceu ser um desconforto doído aqui no peito. Uma ansiedade. Chamei-o. Fez de conta que não me ouviu. Educaste-o muito mal, mas agora não há nada a fazer, já está velho e tonto como eu. Sem ti a servir de intermediário, temos que nos suportar um ao outro e esperar por melhores dias. Dirigiu-se para o sofá com pose de quem se borrifa completamente para mim. Trepou para o assento e deitou-se na mesma posição enroscada como quando se punha ao teu colo. Nesse instante a dor dentro de mim foi tão grande que as lágrimas descontroladas rolaram autónomas pelos vincos das minhas rugas. Sabes amor, nesse mesmo instante pude sentir o cheiro a colónia que se libertava do teu rosto logo pela manhã após o barbear e que inundava a casa. Nem mesmo depois de reformado perdeste o hábito de te barbeares manhã cedo. Eu costumava dizer a brincar que tu libertavas cheiro como as doninhas tal o rasto de odor atrás de ti. Odor que sei de cor e o sinto à distância, na rua ou no autocarro, em rostos que não se assemelham ao teu. Sabes amor, tenho conseguido enganar direitinho a saudade. Arranjo sempre algo com que passar os meus dias. Sabes bem que não consigo estar parada. Cuido da casa. Trato das minhas plantas. Faço as compras habituais. Converso com as vizinhas. Dou os meus passeios. Ralho com o Óscar. Mas hoje, hoje não sei que diferente há dos outros dias. Hoje não consigo conter esta dor que me sufoca o peito e me faz desesperar de infrutífera saudade. Hoje as tuas memórias são insuportáveis recordações da minha perda. Ter de continuar sem ti, hoje, parece-me missão completamente impossível. Hoje, um dia que começou igual a tantos outros, dei conta da minha solidão mal disfarçada que se engana a si própria com monólogos lançados a um gato caprichoso com manias de gente. Hoje, ficou insuportável saber-me sem ti. Amor, fazes-me falta…

6 Comentários:

Anónimo disse...

só para dizer k fiz outro blog =)
www.pensamentosinapropriados.blogspot.com
;)

Anónimo disse...

Saudade é vontade de viver de novo.

Yashmeen disse...

Incrível como te consegues meter na pele das outras pessoas.

Abraço

Vera Isabel disse...

ai, este dói um bocadinho!
e a tua escrita impressiona. everytime.
^^

Anónimo disse...

Deprimente e ao mesmo tempo muito bonito.
Beijinhos

Anónimo disse...

O amor tem de ser verdadeiro para que ele seja tão doloroso.

Belo e triste!