Rita

terça-feira, fevereiro 27, 2007

Esforço-me por concentrar no teu rosto de mulher menina de olhos negros que me fitam lá da moldura, que encarcera a tua foto desfigurada pela transparência de neblina etílica dum copo de gin tónico. Os teus longos e tortuosos caracóis escuros descem vertiginosamente pelos ombros adolescentes, emoldurando a tua face de Anjo do Apocalipse. Tão bonita!
Rita…
Passou mais um dia
Carrossel imparável
Faz quanto tempo? Não me recordo ao certo. A embriaguês onduladamente estonteada turva-me as contas precisas, qual naufrago sobrevivente numa ilha desértica, obsessivamente decoradas à força de tanto as calcular. Cada ano que passa, cada mês, cada dia, cada hora, cada minuto, cada segundo é tempo a mais… e o carrossel não pára…
Senhoras e Senhores, Meninos e Meninas … nova corrida, nova viagem…
E as pessoas lá fora continuam a atravessar as ruas em corridas apressadas de formiguinhas desvairadas, e os carros seguem o seu ziguezaguear de estradas em trânsito intestinal permanentemente obstipado, e as lojas abrem-se no seu melhor esplendor de bailarinas de cabaré em início de carreira, e os alunos arrastam-se penosamente pelos passeios em direcção ao cárcere que os aprisionará por várias horas de tédio, e a cidade respira atarantada ebulição constante sem que ninguém dê pela tua falta, Rita.
Volatilizar-se no ar, desaparecer sem deixar rasto, perder-se no mundo, sem que a memória duma única pessoa (uma só, bastava apenas uma, Rita) com quem te cruzaste nesse dia tivesse ficado presa ao teu sorriso, à tua alegria de viver, aos teus olhos negros profundos!
Como é possível alguém te esquecer, Rita? Apagarem-te da memória… milhares de formiguinhas apressadas, correndo para um destino indefinido e nenhuma se lembra de ti, Rita! Se foste de livre vontade. Se foste obrigada. Ninguém sabe. Ninguém se lembra.
Eu lembro-me de ti. A tua mãe também. Ela, que ainda há pouco acordou transpirada em pânico, de coração acelerado num grito porque no sonho dela eras um corpo sem rosto. Desfigurado. Sem memória. É esse o nosso pânico, Rita. Esquecermos aqueles pormenores que só os pais conseguem enumerar de olhos fechados e que o tempo insiste em pregar partidas às nossas teimosas lembranças. A cicatriz no teu joelho da queda espalhafatosa da bicicleta, o sinal preto no canto da tua boca, a pinta no teu olho esquerdo. Esses mesmos pormenores que procuro em todos os rostos que se cruzam comigo. Procuro-te desaustinadamente em cada um deles, esperançoso que um me traga noticias tuas, que um transporte consigo memória da tua alegre rebeldia, que um me devolva a tua ansiada presença!
Vivo para isso, Rita… nada mais!

3 Comentários:

Anónimo disse...

Este post arrepia só de pensar que pode acontecer a qualquer pai ou mãe

Anónimo disse...

O pesadelo que vira realidade

Anónimo disse...

suponho que toda a gente se esquecerá, na rotina do dia-a-dia. o que é inevitável para todos, excepto aqueles pais.
nem imagino a tormenta diária.