Boa Noite Solidão

domingo, março 11, 2007

Frio
Faz frio
Muito frio
Frio húmido de nevoeiro nocturno colado à pele, pairando entre as fatias delicadas dos lençóis incapazes de afastar das flores azul-cobalto esta eterna sensação de desconforto.
Faz tempo que o meu corpo gelou hibernado nessa rotina espartana diária do Dormir / Acordar / Correr / Trabalhar / Correr / Dormir / Acordar / Correr / Trabalhar.
Terá sido há quanto tempo que a tua mão perdeu a magia libertária de me entorpecer do mundo antropofágico que nos vomita todos os finais do dia em repulsa verde de indigestão? Processo lento, creio eu, iniciado com um beijo distraído apressado quase forçado até, como criança contrafeita recebendo nas faces rosadas os lábios salivados de odor a peixe cozido e azeite das tias matriarcais em domingo de comunhão solene, e finalizado na ambiguidade de vontades alternadas entre o delicado ódio protocolar e a gélida incrustante indiferença. Ao certo, não sei. O que nos fere lentamente em banho-maria, preferimos apagar liminarmente da memória.
Lembras-te, nem sempre fomos este mar imenso de distância. O mundo vibrava ao ritmo da nossa paixão, desse vulcão indomável que nos apossava até ao limite das nossas forças. O centro do mundo ficava exactamente aqui, neste mesmo lugar, onde agora tirito de frio.
Frio que se apodera de mim mesmo quando dou pelo ranger das molas feridas pelo peso do teu corpo na extremidade mais paralelamente oposta na vasta solidão duma cama de casal. Finjo estar adormecida e tu finges acreditar que já adormeci. Dois corpos deitados, longitudinalmente afastados na cama e na vida. Há muito deixamos de ser a sede, a fome e a chama um do outro. Apenas indiferença de tecto, mesa e cama partilhados.
Quando foi que deixamos essa fina camada de gelo se instalasse e nos arrefecesse por dentro e por fora, assassinando-nos irremediavelmente um para o outro? Não faço ideia.
Embalo-me todas as noites na solidão de costas voltadas para um corpo estranho, tão gelado quanto o meu.

6 Comentários:

Patrícia disse...

Pois é...há presenças que sabem a solidão...Há multidões que nos fazem sentir solitários...
Que bom que deve haver alguém que um dia encontraremos que nos há-de aquecer a alma e nos fazer sentir perto, mesmo quando estivermos longe!

oromo disse...

Hummm!!! solidão o estado de que se está só,uma das piores situações é sabermos que temos algo sólido ao nosso lado,
um ser de forma própria.se desejamos suavizar a nossa rotina do sistema,temos de construir dentro de nós mesmos um
interesse no estimular,esforçar,discutindo e falando a cerca dele,principalmente daquilo que pode ser útil ao nosso
aspecto emocional(o aspecto positivo da nossa intimidade).
Bem dizia Seume: «Quando o nosso carácter está finalmente moldado,infelizmente,a nossa força começa bandonar-nos».
Não deixemos as nossas forças a bandonar-nos mesmo que tenhamos gastos na nossa rotina diária.De todos os traços do
nosso carácter,a persistência é geralmente a mais importante para realizar qualquer dos nossos desejos mais intimos.
Já tentou imaginar-se sem a persistência....

beijos....

Yashmeen disse...

Estou sem palavras. Fantástico.

Abraço

Anónimo disse...

Tantas vidas se perdem em momentos de solidão como este!
Muito bonito!
Bjs

Klatuu o embuçado disse...

No Inverno não namores com góticos! :)=

Dark kiss.

Anónimo disse...

Tem o dom e a sensibilidade de dar vida a personagens com corpo e com alma, tão reais e autênticas. Continue. É um prazer ler o que escreve!