A Casa

quarta-feira, setembro 06, 2006

Desci a rua, encadeada pelo sol impiedoso de Verão e pela ausência de referências que preenchiam a minha memória. Seria aqui? Estaria no sítio certo? Faltavam-me o riso e as corridas em tropel, ladeira abaixo, das crianças. As conversas das vizinhas, que cruzavam transversalmente o empedrado da calçada, de janela a janela. Os latidos dos cães que se juntavam à excitação ruidosa da pequenada e pulavam em seu redor.
Agora, havia apenas o barulho distanciado do matraquear mecânico e abafado das locomotivas que passavam bem por cima da rua, e se esticavam, qual serpente ao sol, com as suas carruagens, sobre a ponte com nome de santo popular. Sentei-me no muro baixo de pedra, que provavelmente havia conseguido, anos antes, camuflar-se, ludibriando os buldozers. À minha frente, um espaço vasto, esvaído de recordações, alicerçado, lá mais ao fundo, aos pilares da ponte. Com uma certa agilidade, consegui esboçar mentalmente cada ínfimo pormenor da casa, mas não estava certa da sua localização exacta. A sala de entrada, lugar polivalente, onde funcionava, em simultâneo, o cabeleireiro do bairro, onde a minha tia Milú penteava em “mises” e “permanentes” rebuscadas os achaques das vizinhas, a sala de brincadeiras e de leitura de todos nós (garotos das cercanias incluídos) e local de passagem de vários tufões infantis que diariamente assolavam a porta e se deslocavam vertiginosamente até à cozinha em constantes idas e vindas, capazes de exasperar o mais pacífico dos adultos. O quarto dos meus avós, onde eu, o meu irmão e os meus primos descobrimos, numa tarde de sesta compulsiva, a abertura dissimulada do colchão, por onde o esventramos até à morte da palha e a atiramos uns aos outros em grande algazarra, quais comediantes enlouquecidos. A sala de jantar, passagem obrigatória de todo clã familiar em Natais, Passagens de Ano e Aniversários. A cave, lugar de fascínio, onde o meu avô tentava esconder da nossa estouvada curiosidade, a tipografia e onde vários primos se tisnavam, de quando em vez, com tinta de impressão, a qual era literalmente arrancada da pele em banhos purificantes de água raz.
Mas, em que espaço a minha avó chamava por nós do cimo das escadas traseiras? “… Nando, São, Zé, Nocas, Orlando…!” Era daqui que nós partíamos pelo carreiro estreito, que serpenteava por entre as traseiras das casas, em correrias de índios apaches, com lama na cara, em jeito de pintura de guerra, ao seu chamamento? E os degraus, onde impacientemente nos sentávamos em “escadinha” à espera da sopa que a minha tia Lola distribuía equitativamente e religiosamente por todos, colher a colher, qual hóstia partilhada em comunhão, onde ficavam? Algures por aqui, mas ao certo, onde?
Foi por aqui, nestes terrenos à minha frente, que eu senti pela primeira vez o cheiro da terra recentemente molhada pela chuva – até hoje, é esse odor intenso que me lembro quando penso na infância. Era por ali, mais lá ao longe, talvez, que o meu avô nos dava lições empíricas de zoologia e botânica e teorias igualitárias sobre a vida humana, as quais bebíamos de olhares vivos, num misto de enorme admiração, calcorreando os prados em largos passeios, carregados de flores silvestres para oferecer às mães no regresso.
Quase todos que aqui moravam foram forçados a mudar-se, em nome do progresso e da modernidade dos caminhos-de-ferro portugueses, para blocos de apartamentos camarários que pomposamente classificaram de “conjunto habitacional”. Os meus avós sobreviveram à mudança, mas devido à idade avançada, parte da sua vivacidade ficou desmembrada tal como a casa que deixaram para trás. O sorriso aberto da minha avó e a vontade de mudar o mundo do meu avô implodiram com o passar do tempo e ambos foram desabando lentamente.
As melhores recordações da minha infância estão soterradas ali, algures, nesse espaço vazio…

5 Comentários:

Yashmeen disse...

Lindo... cheirou-me ao nosso Porto...

Anónimo disse...

Ao lado daquela Ponte nasce a memória. A tua, a minha... De todos nós que passamos por aquela casa.
Vários foram os ventos que arrastaram a existência de todos nós pelo carreiro, pelas ruas vizinhas, pelos campos até ao Rio.
Hoje, as memórias pairam em volta da Ponte. Soltas ao vento.
Por vezes, vou lá procurá-las para saber quem sou, de onde vim!
A mudança, carregou a tristeza. Ainda duraram uns anos, mas as Amizades e as Solidariedades grandes e fortes daquele bairro, perderam-se por ali. Talvez ainda andem por lá a pairar, para sempre!!!

Anónimo disse...

É a idade da inocência em todo o seu esplendor!
Também eu revi a minha infãncia ao ler este teu, muito belo, post.
São os odores, os sons, as aventuras, é o reviver da nossa mais bela idade, que habilmente descreves em tão poucas palavras!
Parabéns...bjs

Anónimo disse...

Referências serão sempre vivas na lembrança, mesmo que hajam mudanças físicas no local.

Anónimo disse...

Que saudade.

Parabéns.