Até Amanhã

segunda-feira, agosto 28, 2006

Ouço o timbre monocórdico da tua voz grave, mas não alcanço o que diz. Reconheço os sons que transporta, mas não descubro em mim seus significados. Despes um bouquet de rosas vermelhas, que me estendes num acto maquinal. Tua boca regurgita incessantemente palavras opacas, suaves, quase submissas, reforçadas pelo amarelo do teu rosto em expressões de servil credibilidade. Fragmentos dispersos e vagos ecoam no branco anémico das paredes:
“Perdoa”, “Não estava em mim”, “Quando bebo”, “Última vez”.
Soam-me tão familiares. Onde os ouvi? Que significam? Não me lembro. Continuamente, disperso distraidamente o olhar pelas tuas mãos cinzentas. Um pavor incontrolável assalta-me de imediato. Sinto instintivamente o gosto metálico do sangue impregnando a boca. Num gesto impensado ergo meus dedos defensivos ao canto dos lábios. O contacto atiçou a dor adormecida! Que mágoa revisitada é esta?
Na minha mão, não enxergo o padrão rubro viscoso que antevi por breves momentos. Apenas a surpresa da palma da minha mão imaculadamente aberta. Apenas o negrume sofrimento que estrangula à nascença o mais inocente dos pensamentos.
Mas as tuas mãos amorfas estão quietas, inertes, tão envergonhadas.
Não entendo. Estou cansada! Quero dormir! Não sei se quero acordar!
Lá do fundo, as palavras não cessam de bater em tudo que se cruze à sua passagem: “Teus pais”, “Já falei”, “Buscar-te”, “Nossa Casa”. Disparas à queima-roupa em estampido final à laia de beijo: “Até Amanhã”.
Que dizes tu, que não te entendo? Em que língua falas?
Sinto a alma espancada até à morte, incapaz de reagir à torrente de palavras sem nexo.
Deixa-me dormir! …Esquecer-me deste cansaço! …Apagar a dor!
…Só hoje!

(Pintura "Até Amanhã" gentilmente cedida por João Afonso Silva)

9 Comentários:

Anónimo disse...

Na vida, tudo tem um momento:

Para um momento de reflexão:

" O meu amigo e eu contamos um ao outro todas as nossas preocupações.
Muitas vezes nada há a fazer para as resolver; porém, o saber que estamos lá, um para o outro, prontos a ouvir, é toda a ajuda que precisamos. "

Linda Macfarlane, N. 1953

Anónimo disse...

Desculpa passar assim repentinamente no teu blog. Deves conhecer ( já estou a ser pouco cavalheiro a trtar uma pessoa desconhecida por tu ) o João Lisboa ( meu primo ). Não há problema nenhum, até me fazes um favor. Mas só preciso saber quem és????

Yashmeen disse...

Fantástico.

Anónimo disse...

Tão real que até parece teres vivido tão terrivel experiência!
Como sempre é um texto extremamente bem escrito, que nos permite entrar na pele da vítima de violência conjugal.
Parabéns, uma vez mais.

Anónimo disse...

...depois dos gritos e insultos, a mão voou rápida. Bateu forte!
O rosto saltou, juntamente com as lágrimas. Não da dor. Não do estalo...
A Alma gritou bem lá do fundo a sua raiva, a sua dôr, a sua vontade de partir e não voltar!
Para sempre!
Bjs

Anónimo disse...

É preciso afastar-se e pensar antes de decidir, uma vez que a emoção não é boa conselheira.

Anónimo disse...

Não pude visitar o teu blog nas ultimas semanas, e o que acontece? Uma explosão de escrita! Muito lindo. Gostei!
Bjs

Anónimo disse...

Pesquisando por tema Lua encontrei hoje este seu blog e por curiosidade li este texto "Até amanhã" que já conhecia publicado num outro blog por outra pessoa. A net tem destas coisas e principalmente a falta de respeito pelos direitos de autor. Não sei se terá acesso nem tão pouco se estará interessada em visitar mas aqui fica o link da página onde alguém o transcreveu sem referir a origem. http://pt.netlog.com/AM220606/guestbook
Aos donos das páginas nada se pode responsabilizar quando outros usam o que não lhes pertence. A responsabilidade só pode ser atribuída aos que praticam os actos.

Lilith disse...

Caro Anónimo:
Agradeço o seu comentário bem como a informação que disponibilizou sobre a página onde alguém, desrespeitando completamente um direito consagrado na Constituição Portuguesa, transcreve na íntegra um post meu, sem nunca mencionar a autora (neste caso, o seu pseudónimo), nem o local de onde este foi copiado. Já para não falar nas regras da boa educação que aconselham um pedido de permissão à autora, para efectuar a transcrição de qualquer trabalho criativo.
Como muito bem refere, a responsabilidade pode, deve e será atribuida a quem praticou o acto, pois a apropriação de qualquer trabalho alheio é sempre um ROUBO.
A si, caro Anónimo, agradeço imenso o seu empenho em me facultar esta informação.

Lilith