Para ti, Clara

quinta-feira, agosto 17, 2006

Estou confuso ainda. Clara, peço-te que sejas paciente comigo, aliás como tens sido nestes anos todos de convivência mútua.
Sabes que ando estranho, diferente do habitual: os meus atrasos constantes para jantar e sem justificação plausível; os esquecimentos das datas importantes e de coisas combinadas entre nós; a minha irritabilidade por coisas insignificantes; o meu estado de confusão e impaciência em que mergulho nalguns dias.
Isto vem acontecendo há já algum tempo, mas agora não consigo mais disfarçar tão bem quanto no início.
Lembras-te? Há pouco tempo ficaste tão desesperada comigo que até me acusaste de ter um caso com outra mulher, eu que neste tempo todo de casados só tenho tido olhos para ti!
Nunca te contei a verdade sobre os meus atrasos. Na realidade eram tão ridículos! O facto é que pura e simplesmente não era capaz de me lembrar onde morava. Não raras vezes, conduzia o carro, perdido das horas tardias, sem conseguir encontrar a nossa casa. Graças a Deus, ao fim de várias tentativas consegui sempre regressar. No emprego, também me aconteceu pedir ao Marques que elaborasse vários relatórios e a cara de espanto dele era indisfarçável quando me dizia ter-mos entregues na semana anterior ou uns dias antes. Para contornar a minha crescente falta de memória, anotei em post-its toda a informação que achava importante e colocá-los em sítios de passagem frequente para não me esquecer onde os tinha colado.
Clara, o meu mundo perdeu o norte e isso tornou-me melancólico por vezes, irritadiço noutras. Pensei que poderia resolver tudo tomando umas vitaminas. Ando sempre em stress não é? Atribui a falta de memória ao cansaço. De certeza que estaria a necessitar dum reforço vitamínico, apenas isso. O Dr. Guimarães foi diligentíssimo como sempre. Eu só não estava preparado para as notícias que ele tinha para me dar: Clara, eu sofro de Alzheimer! Tu sabes bem que não tenho medo da morte. Andamos cá todos e há um dia que tem escrito a nossa hora. Embora não goste do sofrimento, estava preparado para que, daqui uns anos, morresse dum cancro qualquer. Mas assusta-me morrer sem consciência, sem as lembranças duma vida inteira (sem memória do 1º dia em que te conheci – como estavas linda, Meu Deus!), sem saber que tivemos 2 filhos maravilhosos, que assistirão dentro em breve à decadência do pai. E destroça-me por dentro saber que o meu amor por ti vai morrer dentro de mim, sem que eu possa fazer nada para inverter esse processo, e que tu sejas obrigada a assistir a tudo isso. Eu que achava a vida tinha sido tão benevolente comigo…! Escrevo-te antes que seja incapaz de o fazer e tu tenhas de cuidar de mim com o desvelo que te caracteriza e como o fizeste com os nossos filhos recém-nascidos. Acima de tudo, quero dizer-te que não mudaria nada na vida, principalmente a que passei contigo. Tem sido um privilégio partilhá-la contigo, Clara, Meu Amor!

3 Comentários:

Anónimo disse...

Profundamente comovente!
Impressiona e a arrepia, ler as palavras do retrato, que podemos ter, a qualquer momento!
Muito bonito mesmo!
Bjs

Anónimo disse...

Tremendamente realista!
Pode acontecer a todos, penso, corroi quem dessa doença padece e desnortei-a aqueles que o acompanham!
Parabéns pela clareza do texto!
Bj

Anónimo disse...

O texto é muito bom, retrata algo que pode acontecer com todos nós mas que nem sempre somos sensíveis até que isto aconteça tão perto.